O ofício de escrever-se (e outras confusões) | Cara do Espelho #14
Há muitos anos, assisti a uma dessas comédias românticas sobre um escritor em busca de inspiração para escrever/finalizar sua obra. Nela, um escritor metropolitano viaja para algum lugar longínquo da Itália em busca de um escritor famoso e bloqueado. As razões não me recordo; no entanto, o forasteiro se apaixona pela filha do rabugento e boêmio escritor ancião. É notório que preciso rever o filme para refrescar minha memória quanto à trama, porém o que costumo lembrar com frequência é uma passagem do escritor idoso dando uma aula de escrita para o iniciante.
O jovem saca seu notebook naquele cenário rural e pacato, o que logo chama a atenção do velho, que questiona sua escolha. A resposta seria algo em torno da praticidade e facilidade da máquina. Pouco depois, o velho retorna com uma máquina de escrever e lhe dá uma lição, típica dos mestres anciãos: escrever não tem que ser fácil.
Não que eu queira confrontar o genial e reconhecido gênio escritor fictício, mas guardei seu conselho em uma caixinha diferente daquela que ele propôs.
O que quero dizer é que escrever realmente não deve ser fácil, mas não no plano técnico e instrumental. Se eu tiver um computador ou tablet com bom processamento e um editor de texto razoável, já estarei feliz. Inclusive, com uma boa IA para me ajudar a revisar e devanear com meus botões, eu poderia ser ainda mais feliz no processo.
O fato é que o aparato não torna o ato de escrever mais fácil. Escrever é transbordar em palavras, é nomear o inominável que só existe na alma de quem escreve. Fazer o mistério emergir de dentro de si até que possa alcançar as linhas de um texto. Escrever não deve mesmo ser fácil, porque se colocar textualmente, onde quer que seja, é assumir uma posição no mundo e, portanto, baixar as guardas, quebrar as muralhas e estar diante do mundo, com suas armaduras e fragilidades igualmente expostas.
A técnica pode superar alguns desafios, mas não exclui a hesitação de saltar em queda livre numa página em branco. O incômodo é o mesmo, independente se o abismo é uma folha de papel ou um monitor LED. Escrever, em essência, nunca será fácil, pois demanda uma parcela de esforço, outra de alma. Sentir e pressentir ainda são os desafios de um escritor.
Além do mais, que a tecnologia nos ajude cada vez mais, pois de difícil já basta o que nos entorna.
Notas no espelho:
Publiquei o texto acima assim como o escrevi, mas não poderia deixar de indicar o filme. O título é “De encontro com o amor” (original: Shadows in the Sun), de 2005. O filme conta a história de Jeremy Taylor (Joshua Jackson), um jovem escritor que parte em busca de seu ídolo, o recluso e aclamado autor Weldon Parish (Harvey Keitel). Parish vive isolado na zona rural da Itália após sofrer um grave bloqueio criativo. Jeremy consegue se aproximar do mentor, que, após uma resistência inicial, começa a lhe ensinar lições valiosas não apenas sobre escrita, mas também sobre a vida e o amor, enquanto ambos lidam com seus dilemas pessoais. Veja o trailer (em qualidade de centavos):