Kindle cheio, mas a que custo?
A celebração dos resultados do "Encha seu Kindle" é justa e necessária, mas também é preciso considerar o que pode estar por trás dos cliques e de cada download
A campanha “Encha seu Kindle” foi uma iniciativa valiosa de estímulo à leitura e divulgação de autores independentes. É uma verdadeira vitória ver a magnitude alcançada pela iniciativa do perfil Divulga Nacional, que mobilizou até a gigante das vendas Amazon, em mais uma demonstração louvável para viabilizar a conexão entre escritores e leitores, uma oportunidade única que deve ser — e certamente foi — aproveitada por ambos.
Nas mídias sociais, vi muita gente engajada no movimento. Vários leitores comentando suas volumosas aquisições de um lado - e escritores comemorando os números expressivos em suas páginas de vendas no KDP do outro. Nada mais justo do que um momento de celebração, mas foi nesse ponto que alguns questionamentos começaram a pairar.
No meu mestrado, tenho pensado muito sobre como nosso ofício de escritor foi profundamente modificado para ser, estar e vender nas mídias. Estamos completamente imersos — talvez submersos expresse o meu sentimento —, nesse cenário de plataformas e submetidos a lógicas que nos precarizam e nos aprisionam.
Explico melhor. O que vi foram muitos colegas escritores publicando em seus stories os números muito altos de downloads. E faço a escolha da palavra download e não vendas/compras, porque os usuários/clientes da plataforma Amazon ‘compraram’ os livros gratuitamente. Isso quer dizer que os escritores colocaram seus livros gratuitamente, sem retorno financeiro nenhum. Abdicaram de qualquer tipo de lucro em nome de uma possível projeção, nem mesmo as páginas lidas são contabilizadas nessa modalidade de transação.
Lembrei-me de uma vez que coloquei ‘Novo Rumo’, meu último livro lançado na Amazon, gratuito. Em uma tarde, o livro teve 1.500 downloads. Vendendo no modo padrão, nunca devo ter chegado à marca de 100. Brinquei com os colegas: poxa, se cada pessoa tivesse comprado por 1 real, eu teria ganhado pelo menos R$ 1.500 — claro, desconsiderando a porcentagem do preço de capa.
Então, o riso vem com notas amargas: o ofício do escritor é ainda mais precarizado, porque o produto do nosso trabalho é tão desvalorizado ao ponto de só ser consumido se for de graça. É como se errássemos em cobrar pelo nosso trabalho. O sentimento de frustração é inevitável.
Este sentimento me fez pensar na chamada ideologia do solucionismo tecnológico, identificada por Evgeny Morozov (2018), como provinda do Vale do Silício, e que levanta a bandeira de que é possível solucionar qualquer tipo de problema com tecnologia, seja ele de qual natureza for. Quanto mais tecnologia, melhor. A campanha para encher o kindle parece trazer uma resolução satisfatória para o problema da falta de leitura e visibilidade enfrentadas pelos escritores independentes, mas ela o soluciona de forma superficial e quase alegórica, ignorando — ou agravando em algum nível — o problema estrutural da remuneração e da sustentabilidade da carreira do escritor.
Agora, desloco minha posição de escritor para a de leitor: ao longo da manhã daquele dia de campanha, baixei uma quantidade considerável de títulos e sequer me dei ao trabalho de contar. Havia livros acadêmicos, manuais, romances, contos de toda sorte e outros. Dias se passaram e ainda não fui para a biblioteca do kindle conferir os downloads e, tampouco, começar uma leitura. Não que eu seja parâmetro, mas quantas pessoas que baixaram inúmeros livros, de fato, voltaram para suas bibliotecas e olharam livro por livro? Ou mesmo quem pegou um livro gratuito num momento qualquer e jamais foi na biblioteca ler esse livro? Eu não atiraria a primeira pedra, pois deve haver ebooks fossilizados no meu kindle.
O ponto é que, agora como escritor novamente, senti como se estivesse panfletando na rua, num calçadão, entregando o meu livro tal qual panfleto na mão de várias pessoas. Uma porcentagem muito pequena vai olhar aquele panfleto. E uma porcentagem ainda menor vai se interessar em ler o livro. Então, todo aquele engajamento da página de downloads não desenvolve e consolida relações concretas entre leitores e escritores. Raras são as felizes e genuínas exceções.
No fim das contas, esbarramos no inevitável questionamento: quem está ganhando por trás disso? A resposta é simples e, ao mesmo tempo, complicada: são as plataformas. Neste caso, a Amazon. Afinal não podemos perder de vista que um fluxo muito grande de gente interagiu com o conteúdo, dentro do site que é projetado para mostrar conteúdo (seus produtos) e colher os dados dos usuários. Os autores fornecem seu serviço de graça (escrever, além de publicar na plataforma sob seus termos); os leitores, por sua vez, fornecem os seus dados de graça — pensemos em histórico de busca, os gostos, as preferências — e tudo isso é entregue à mão das plataformas. E elas são as únicas que ganham.
Esse mecanismo de captura de dados é um dos pilares das plataformas digitais e faz parte do que Shoshana Zuboff (2021) chama de Capitalismo de Vigilância, que “se alimenta de todo aspecto de toda a experiência humana” (p. 20) minerando altos volumes de dados de usuários. Pensando nesse modelo, o produto não seria o livro gratuito. Ele seria mera isca. O verdadeiro produto são os dados comportamentais dos leitores, que são extraídos gratuitamente — com consentimento “compulsório” ditado nos termos de uso — e usados para prever e modificar o comportamento futuro do consumidor, gerando lucro para a plataforma. É possível, assim, pensar a campanha, como uma gigantesca e barata operação da Amazon de extração de dados.
A posição do escritor aqui é difícil. Estamos falando de uma plataforma protagonista na autopublicação e nós, escritores, estamos numa posição de cooptação a estar ali. Se não estivermos ali, seria como não existir no mercado. Ainda mais sendo escritor independente.
Enquanto leitores, podemos pensar em fortalecer esses indivíduos. Espero que as pessoas que baixaram os livros leiam e possam ir além da leitura. Procurem os escritores nas redes sociais, indiquem os livros, comentem e avaliem na página de vendas.
A celebração dos resultados é muito válida, mas não dá para ser tão otimista sabendo que, por trás de toda essa comemoração, existe uma estrutura que está sugando “a alma” dos escritores, bem como os dados dos leitores.
Nos cabe, cada vez mais, ter consciência do que nós estamos fazendo, onde estamos fazendo e, principalmente, com quem estamos fazendo, em termos de plataformas. Quando possível, contorná-las. Quando não, usá-las com mais consciência, no sentido de fortalecer a independência e autonomia dos escritores. Precisamos questionar essas ferramentas, suas lógicas, suas políticas, seus modelos de negócio e valores. Como alertam Van Dijck, Poell & De Waal (2018), as plataformas não são meros intermediários neutros, mas infraestruturas que moldam ativamente os mercados e as práticas sociais. Isso quer dizer que elas definem as regras do jogo, tornam-se essenciais e quase impossíveis de “escapar”.
Referências:
MOROZOV, Evgeny. Big tech. Ubu Editora LTDA-ME, 2018.
VAN DIJCK, José; POELL, Thomas; DE WAAL, Martijn. The platform society: Public values in a connective world. Oxford university press, 2018.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Editora Intrínseca, 2021.
Sobre Novo Rumo:
O livro de minha autoria que citei nas linhas acima é Novo Rumo, já escrevi sobre ele por aqui e você pode encontrá-lo na Amazon (sim, ela) aqui: https://a.co/d/c49qraQ
Sobre a imagem que ilustra:
A imagem que ilustra esse post é uma representação do Panóptico, ou Panopticon: uma estrutura arquitetônica circular com uma torre de observação central, onde um vigia pode ver os ocupantes das celas dispostas à volta, mas estes não conseguem ver quem está na torre. Criado pelo filósofo Jeremy Bentham, o seu propósito é a vigilância constante e ininterrupta, levando à interiorização da disciplina e do autocontrolo por parte dos vigiados, que se sentem sempre observados. Infelizmente, não encontrei a autoria da ilustração.
