Observo com admiração quando ouço alguém falar de sua terra natal com paixão e fervor, porque deve ser muito bom sentir uma identificação tão profunda, presente, íntima e enraizada desde sempre. Digo isso sobre os sapatos de quem caminhou passos largos e firmes para longe de sua terra genitora, como quem escutou um chamado doutro lugar, uma urgência inexplicável de partir. Espero que estas palavras não soem algum tipo de recusa às raízes, pois não é o caso.
É um sentimento peculiar, pois ele não renega o amor, o respeito e a história daqueles meus dias em minha terra, muito pelo contrário. Tudo naquele tempo e espaço parecem ter se alinhado e colaborado para o derradeiro momento da partida. Permanecer parecia cômodo, mas exigiria esforços hercúleos de silenciar um chamado que só podia ser ouvido em meu coração. Ficar seria me espremer num molde de expectativas internas e externas irreais. Entre perceber o chamado até atendê-lo, o tempo se distendeu, minha alma parecia estar sempre dando passos para trás, ora por uma recusa a permanecer, ora como estratégia para pegar um impulso qualquer.
A comparação, tal qual como uma superdosagem de remédio, mais adoece do que cura e foi por recusar as dinâmicas naturais daquele espaço-tempo que me senti paralisado. A percepção do tempo era distorcida, me fazendo me sentir em slow-motion (deve haver uma expressão melhor do que câmera lenta em português!) ao me comparar com os ritmos alheios enquanto, por outro lado, palpitava por achar que o tempo estava se esgotando junto com os meus dias de adolescência.
O melancólico e poético narrador do livro “Nadando do Escuro”, escrito por Tomaz Jedrowski, tem uma série de passagens que poderia trazer para este relato, no entanto, esta me parece ter a escolha correta de palavras para aquela estranha tensão espaço-temporal. Ludwik diz assim: “Minha vida era um corredor minúsculo e estreito, sem nenhuma porta de saída, um túnel tão estreito que feria meus cotovelos, com apenas uma direção a seguir. Isso ou nada, disse a mim mesmo. Isso ou ir embora”.
Em meio a paralisia, era a imaginação que fazia eu me sentir em movimento. Desde os dias de infância, minha mente parece ter sido programada para operar num tempo-espaço imaginário, uma mescla hipotética e fictícia entre o presente e o futuro, ou o nunca mais. Qualquer movimento, ainda que imaginário, me parecia mais agradável. A urgência de movimentar, seguir, caminhar, correr se fosse o caso, qualquer coisas que me fizesse avançar. Eu demorei a perceber, mas era a arte sentando ao meu lado, batendo a mão na minha coxa e sussurrando: “não se deixe afogar por estes mergulhos existenciais”. A escrita se tornou companhia, suporte, cura, instrumento, catapulta. A arte era um meio de ir antes de ir.
Eu queria transformação e, nos emaranhados de minhas fabulações silenciosas, minha terra natal não tinha espaço. Permanecia ali como um capítulo concluído de uma leitura pausada. Qual seria o próximo capítulo? Eu ansiava desesperadamente por ele.
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Enquanto fazia isso, era confrontado por perguntas sobre o que esperava da vida, do mercado de trabalho, do que quer que seja. E eu tinha todas essas respostas, mas parecia impossível traduzi-las e transpô-las de minha dimensão interna e imaginária espaço-temporal. Um “não querer estar aqui” era erroneamente interpretado como um “eu odeio esse lugar”. É certo que meu desânimo sobre tudo ali não ajudava a mudar essa percepção, eu confesso. O que me impelia ao movimento nunca foi desprezo ou ódio, era a certeza que aquele lugar já havia me parido, me criado e me ensinado a ser quem e como sou. Não consigo dizer que sou apaixonado por aquela terra, mas não a odeio, nunca foi sobre isso. O fato é que permanecer não fazia sentido, porém minha mente adolescente não conseguia elaborar a ideia e a pouca ousadia não me ajudava a encontrar a saída. Permanecer significaria perder tudo que eu poderia ter sido.
Amei aquele lugar até tomar total consciência de mim e constatar, com atordoamento juvenil, que ali não era meu lugar. A materialidade de cidade não me faz falta e ainda amo os meus que por lá permanecem, assim como reconheço que minha mente guarda um bloqueio em retornar seja lá para o que for (só o fiz poucas vezes, muitas a trabalho). Passei muito tempo sem sentir amor a um local, até que conheci o bairro onde moro há uma década e, desde o primeiro dia, senti uma conexão sorridente, leve e reconfortante, tal qual um abraço. A sensação de lar.
Meu amor por minha terra natal nunca foi uma paixão ardente e afetada, não sou assim e creio que meus conterrâneos, no geral, também não sejam. Amo como uma lembrança boa, amo quando enxergo seus traços em minha identidade. No meu agir. No meu pensar. Amo ironicamente quando lembro que o vaqueiro que dá nome a cidade, Simão Dias, era alguém que veio de fora, sob circunstâncias diversas, e se instalou por lá para proteger o gado de seu senhor. Amo quando descobrem de onde eu vim e brincam que é a terra dos governadores, dos jornalistas, dos escritores, dos advogados, de Paulinha Abelha e de Josa, o Vaqueiro do Sertão (surpreendentemente, meu primo em algum grau), e tantas outras referências.
Eu sei onde minhas raízes estão fincadas, mas estou quase certo de que sou semente levado para longe por algum pássaro e pelo vento para desabrochar e florir. Como escreveu Mário Quintana, “é preciso partir, é preciso chegar… Ah, como esta vida é urgente”.
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Notas no Espelho:
A leitura de Nadando no Escuro foi minha retomada ao hábito de leitura em 2024 e foi uma inesperada boa companhia com passagens muito sensíveis e bonitas. O complexo pano de fundo histórico torna a narrativa ainda mais marcante e rica. Valeu a pena cada página. Para saber mais: https://revistaogrito.com/nadando-no-escuro-evidencia-o-amor-romantico-para-falar-da-repressao-gay-na-polonia-comunista/
Imagem de capa: Um pôster criado por Maarten Leon, artista holandês que cria arte fotográfica gráfica. O site dele é esse aqui: https://www.maartenleon.com
Me questiono se uma frequência indefinida de postagens é o melhor caminho. Ainda não sei lidar com essa liberdade.
